quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

O COLIBRI ALBINO











o  colibri albino



entrei no elevador. Daqueles antigos que andam e saltam.todo em ferro antigo.estilo arte nova.parece
incrível ainda existirem coisas destas no século 22.
Ela e eu.ninguem mais.até onde? O meu destino era
o 22. andar.observei a rapariga.morena,olhos castanhos,avelã escura.cabelos da mesma tonalidade.tinha um corpo pequeno,elegante.vestia uma saia de cachemira que revelava as linhas da cintura e das ancas.uma blusa-túnica azul e pulseiras.chamou a minha atenção,não pelo facto de ser só ela e eu nesse espaço estreito,mas por causa do perfume.natural,adivinhei.uma fragrância de terra,folhas,um ar de frescura que contrastava com o cheiro a velharia,secura,solidão deste velho elevador.senti-me bem.e senti vontade de estabelecer contacto.porque não? Sou um individuo simpático,singular.a minha figura,creio eu,apesar da idade,é uma figura relativamente atraente.reconheço não ser o ideal para uma rapariga como ela,mas sei,gostando de mim o suficiente,poder atrair.
Tentei ao principio ser discreto,não ser indelicado na forma de observar.o meu único receio era que acontecesse aquilo que,não posso evitar de forma alguma,sempre surge em momentos imprevistos.é hereditário.e vem quando há adrenalina em movimento.adrenalina e libido.porque sim,senti desejo.e a rapariga não fizera qualquer esforço.
Como começar uma conversa?não gosto de clichés.iria tentar uma abordagem original.esperei uma oportunidade natural.sorrirmos ao mesmo tempo,olharmos um para o outro e poderia haver um clic.a sorte favoreceu-me.o elevador sofreu um balanço forte.muito parecido com um sismo.ela foi apanhada desprevenida.teve de equilibrar-se no meu ombro.e eu aproveitei: __acho que sobrevivemos.
O sorriso que ela mostrou levantaria um paralítico da cadeira e fa-lo-ia correr 200 m em trinta segundos.o sorriso dela rasgaria o nevoeiro mais denso,faria nascer rosas no deserto mais seco.senti um nó na garganta igual ao nascimento de uma supernova.não consegui dizer uma palavra.que me fez lembrar aquele sorriso?tinha tudo,simpatia,confiança,pureza e o inverso,uma cumplicidade,sintonia.fiquei quase k.o.
Tinha de conhecer esta rapariga.senti necessidade de entrar no mundo dela.quer houvessem riscos de envolvimento emocional ou não.eu vinha de uma relação complicada.sofri durante alguns meses a perda de uma pessoa que era apenas metade de mim mesmo.sei que mais cedo ou mais tarde teria de ver as coisas em termos de continuar a viver,revalorizar-me.é certo ter feito essa pessoa sofrer.andei sem sair do mesmo lugar.precisava de um novo fôlego.e de repente?uma banal viagem de elevador?
Não iria tropeçar nos erros de antigamente.aprendi com erros,com a dor.e queria voltar a sentir-me vivo.
Portanto aquele sorriso foi uma espécie de sinal.ela ficou a olhar para mim durante uns segundos.será que esperava uma oportunidade de estabelecer contacto?
Que poderia eu dizer agora? Também esperei.queria ouvir a voz dela.e,sim,ela  falou.com os olhos.lançou uma lágrima pequenina.que se transformou em borboleta.branca.
E eu perguntei: _donde vens?
?da terra dos sonhos?.?julguei que sabias quando entrámos no elevador?.
Eu sabia que estava bem acordado e sabia também que estas coisas não acontecem todos os dias.achei que era altura de colorir a realidade.
Aproximei-me.segurei as mãos dela.respirei a essência dela.
_se és sonho não vou querer despertar mais até ao fim dos tempos.
E libertei do meu coração um colibri albino.O colibri albino
2
Éramos um casal com uma idade indefinida.tínhamos vivido á margem do tempo,sem limitações,sem medos.um de nós guardava barcos de papel nos lábios e borboletas no cabelo.o outro largava colibris albinos e uma fragrância subtil,leve ,de violoncelos de seda.éramos muito chegados uma vez que fizemos uma união debaixo do mar,rodeados de búzios,estrelas do mar e alguns seixos com o rosto da eternidade.havia sempre luz nos olhos dela.nos meus encontravam-se gatos a miar á lua,lágrimas silenciosas & segredos felinos,genuínos.
Éramos um e outro amando sem causa nem efeito,magicamente intensos na obra do amor.e por isso,quando chegávamos a um lugar onde não existia cor,logo ela estendia os seus braços pequeninos de boneca de porcelana e nasciam arco-íris nas flores que antes se liam a preto & banco ou cinzento-doentio.eu fascinado,seguia a dança de uma menina-mulher-fada e sentuia-me contagiado pela sua pureza inata e pela capacidade inocente dela em construir sonho a partir do nada.hoje estou sozinho á beira do mar a observar o corpo das ondas,e a escutar o âmbar escondido no movimento da espuma.os dias são agora contados em tristeza profunda,em pedaços de memórias que se desvanecem tal qual um castelo de areia.procuro a voz das gaivotas,o canto das gaivotas é igual ao mármore frio de algumas estrelas.tem uma luz algo mortiça ,efémera e voraz.eu sentei-me na areia encostado a um barco,que não era certamente igual aos que ela guardava nos lábios e sabia ser cada dia um fim dos meus dias e procurei limitar-me a uma existência inerte porque já não tinha razões para ser quem sempre fui:um viajante-caçador de mundos no sonho dos outros e juntava os meus aos deles para sermos mais contra a corrente do rio feito de sombra.aquele rio que corre onde os homens nunca foram crianças.e eu vagueava,nadando com ossos fatigados com olhos desistentes,quase vazios,quase sem cor sobre o manto de areia e molhava os meus pés no tecido líquido do meu próprio lamento.as minhas lágrimas tornavam-se pedra.pedra gelada,agreste,de linhas duras & cortantes,eu era um punhal em praias do meu longe e do meu perto.um velho que deixa de acreditar.um pássaro também,antes aceso febril,alegre,forte e aventureiro e amante de coisas simples.
Ainda não era o fim de tudo.um gatinho enroscou-se insensato e feliz,á roda das minhas pernas.adivinhei uma chama a crepitar ,a brincar com os meus sentidos.esperei um sinal.que não veio.queria supor ser ela a dedescobrir-se,a revelar-de de novo no seio do meu coração vítreo,já um pouco insensível,embora não de todo ausente…tive o maior medo de todos os medos:ir perdendo o rosto dela á medida dos dias passarem atraiçoando a nossa cumplicidade imortal,ir esquecendo,grão a grão,gomo a gomo,o sabor dela em mim.pois aquilo que nós éramos,eu sabia,podia apagar-se de um momento  a outro,as mãos separarem-se,os corpos começarem a falar sem dizer o que sentíamos.e esse medo seria ador das dores,o maior pesadelo que se pode imaginar.não ia deixar as coisas neste fio de pensamentos.teimei em chamar o seu nome,a ela que não precisava de ter nome.ela era e pronto.um ser belo,pleno,inocente,radiante.eu,por meu lado absorvia algo da noite cheia de luar.teimei em chamar a menina com braços de boneca de porcelana e fui vivendo sempre colado a uma parede húmida de dúvidas e receios,isolado dos outros animais.
Mas de vez em quando largava um pequeno,um pouco incandescente,colibri albino,nos lugares onde antes estivemos e por enquanto isto era suficiente.para ainda ir acreditando que existia a criança em mim.   
by JOÃO PAULO CALADO (todos os direitos reservados)

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