domingo, 13 de outubro de 2013

nº 18 - O Homem Ilustrado


Autor: Ray Bradbury
Título original: The Ilustrated Man
1ª Edição: 1951
Publicado na Colecção Argonauta em 1955
Capa: Cândido Costa Pinto 
Tradução: Eurico da Costa

Súmula - foi apresentada no livro nº17 da Colecção, com a indicação de "Ler nas páginas seguintes a súmula do próximo volume da Colecção Argonauta":

Depois de "O Mundo Marciano", que foi recebido com tanto agrado pelo nosso público, a "Colecção Argonauta" orgulha-se de apresentar o segundo livro famoso do mais cotado escritor de Ficção Científica da América do Norte: Ray Bradbury.
Ray Bradbury é um prosador poeta, ou um poeta prosador. Todas as suas obras rescendem a uma filosofia muito de admirar no género de literatura que escolheu, onde se espraia em considerações sobre a sabedoria do Universo, o segredo das pontes perdidas, dos mares azuis, dos sóis-rubros, dos cometas, das constelações, das galáxias, que se alongam até ao Infinito, dos homens perante o futuro e as incógnitas traçadas pela cibernética.
Mas, dê-se antes de mais nada a palavra ao próprio autor que, no prólogo da sua obra, nos apresenta magistralmente o seu infeliz protagonista:

Foi por uma tarde quente de princípios de Setembro que encontrei, pela primeira vez, o Homem Ilustrado. Percorria a última etapa de uma viagem a pé, de quinze dias, pelo Wisconsin. Ao cair da noite, parei para comer alguma carne de porco fria, com feijões e um biscoito. Preparava-me para me estender a ler quando o Homem Ilustrado surgiu no alto da colina e ficou um momento imóvel, a silhueta recortada contra o céu.
Ignorava nesse momento, que ele estava Ilustrado. Reparei, unicamente, que era alto, que outrora fora bem musculado, mas, agora, por qualquer razão, tinha tendência para engordar. Lembro-me que possuía uns braços longos e umas mãos grossas, mas o rosto, no alto do corpo maciço, era como o de uma criança.
Pareceu-me pressentir a minha presença, pois não me olhou na altura em que pronunciou as primeiras palavras:
- Sabe onde posso arranjar trabalho?
- Lamento, mas não sei – disse eu.
- Ainda não conseguium emprego durável nestes últimos quarenta anos.
Fazia calor. No entanto o colarinho da sua camisa de lã estava abotoado e as mangas fechadas em redor dos grossos punhos. O suor escorria-lhe pelo rosto, mas não abria a camisa.
- Bem – disse ele finalmente – este sítio é tão bom como qualquer outro para passar a noite. 
- Importa-se que lhe faça companhia?
- Tenho ainda alguma comida que gostaria de repartir consigo – ofereci eu.
Sentou-se pesadamente, resmungando.
- Vai arrepender-se de me pedir para ficar. Toda a gente se arrepende. É por causa disso que não páro. Estamos em princípios de Setembro, a melhor época para divertimentos. Ganharia montões de ouro numa feira de qualquer pequena cidade. Mas aqui estou, sem nenhum contrato.
Descalçou um enorme sapato e examinou-o de perto.
- Geralmente, aguento-me num emprego dez dias. Depois, acontece sempre a mesma coisa e despedem-me. Nesta altura, em nenhuma feira da América me queriam tocar nem mesmo com a ponta de uma vara.
- Mas o que é que se passa consigo?
Como resposta, desabotoou lentamente o apertado colarinho. Com os olhos cerrados, abriu a camisa e, com a ponta dos dedos, tacteou o peito.
- É curioso – observou ele – não se podem sentir, mas a verdade é que estão cá. Tenho sempre a esperança de que um dia desaparecerão. Durante horas seguidas caminho ao Sol, sob o mais escaldante calor, queimo-me, na esperança que o suor as faça desaparecer, que o Sol as derreta; mas à noite ainda cá estão.
Voltando ligeiramente a cabeça na minha direcção, mostrou-me o peito.
- Ainda cá estão. As Ilustrações.
- Uma outra razão porque eu conservo o colarinho abotoado são as crianças – disse ele, abrindo os olhos. “Perseguem-me pelos caminhos, pelos campos. Querem ver as imagens, e todavia, ninguém a não ser elas, tem curiosidade nisso”.
Despiu a camisa e torceu-a. Estava coberto de imagens, desde o anel tatuado, à volta do pescoço, até à cintura.
- E isto continua – prosseguiu ele, adivinhando o meu pensamento. “Sou inteiramente Ilustrado. Veja!”.
Abriu a mão. Na palma havia uma rosa; tinha acabado de ser colhida e nas delicadas pétalas via-se ainda orvalho cristalino. Estendi o dedo para a tocar, mas era uma imagem!
Quanto ao resto do seu corpo… Não poderei explicar como fiquei ali com os olhos esgazeados. Era um turbilhão de astronaves, fontes e gentes, com tão entrelaçados pormenores e cores que se podiam ouvir os murmúrios e as vozes abafadas das multidões que habitavam aquele corpo. Quando estremecia, as pequenas bocas animavam-se, os minúsculos olhos verdes ou doirados moviam-se, as pequenas e rosadas mãos agitavam-se. Havia prados amarelos, rios azuis, montanhas, estrelas, sóis e planetas, dispersos numa Via Láctea que lhe descia pelo peito. As figuras estavam dispersas, em grupos de vinte ou trinta, nos braços, nas espáduas, no dorso, nos flancos, nos punhos, no plexo solar. Havia-as, também, numa floresta de pêlos, escondidas entre uma constelação de sardas, espiando do fundo das cavernosas axilas, os olhos faíscando como diamantes. Cada grupo parecia ter uma actividade própria; cada um era constituído por uma galeria diferente de figuras.
- São belas! – exclamei.
Como descrevê-las? Se Greco, no auge do talento, tivesse pintado miniaturas não maiores que a mão, com as suas cores sulforosas, com a sua morfologia especial, a anatomia alongada, talvez tivesse aproveitado o corpo deste homem para a sua obra. As cores brilhantes em três dimensões. Aí, reunidas como numa parede, recortavam-se as cenas mais extraordinárias do Universo. Este homem era um museu ambulante. Não era o trabalho tricromado de um tatuador de feira, de hálito avinhado; era a obra-prima inspirada, vibrante, límpida e bela de um génio.
- Oh, sim! - Disse o Homem Ilustrado, sou tão orgulhoso das minhas Ilustrações que até gostaria de lhes lançar fogo. Já tentei o esmeril, o ácido, a navalha...
O Sol escondia-se. A Lua estava já alta, a Oriente.
- Porque, veja - continuou o Homem Ilustrado - estas Ilustrações predizem o futuro.
Olhei-o em silêncio.
- Durante as horas do dia, ainda vá - prosseguiu ele; posso arranjar trabalho por um dia. Mas à noite, elas movem-se. As imagens ganham vida própria.
Creio que sorri.
- Desde quando está Ilustrado?
- Em 1900, tinha eu vinte anos, trabalhava numa feira e parti uma perna. O acidente imobilizou-me. Tinha que arranjar trabalho para me manter. Então decidi fazer-me tatuar.
- Mas quem o tatuou? O que aconteceu ao artista?
- Ela voltou para o futuro... É exactamente isso que quero dizer. Uma velha mulher, numa casinha algures no Wisconsin, em algum sítio não longe daqui. Uma velha e pequena feiticeira que tinha o ar de ter mil anos em certos momentos, e vinte no instante imediato. Mas afirmava que se podia deslocar no Tempo. Ri-me. Mas, já não o faço agora!
- Como a  encontrou?
Relatou-me, então, a história. Tinha visto na margem de uma estrada, uma tabuleta pintada: "Ilustrações sobre a pele!" Ilustrações, e não tatuagens! Foi no decorrer de uma noite que as agulhas mágicas da mulher o morderam como vespas, o picaram como abelhas, o sugaram como sanguessugas. Chegada a manhã, tinha o aspecto de um homem que tivesse passado sob uma prensa polícroma, muito liso, multicolor, cintilante.
- Procurei-a todos os Verões durante cinquenta anos - terminou ele estendendo os braços. "Quando encontrar a feiticeira, matá-la-ei!"
O Sol desaparecera. As primeiras estrelas brilhavam no firmamento e a Lua iluminava os campos de trigo e os prados. As imagens do Homem Ilustrado brilhavam como carvões, na penumbra, como rubis e esmeraldas, com as cores das telas de Van Gogh, de Klee e os corpos alongados de Greco.
Quando as imagens se movem, as pessoas mandam-me embora. Ninguém gosta de as ver, tanto mais que nas minhas Ilustrações se passam coisas espantosas. Cada uma delas é uma históriazinha. Se as observar, elas contar-lhe-ão, em poucos minutos, uma história. Em três horas, verá desenrolar-se uma vintena de histórias sobre o meu corpo. Poderá ouvir vozes, aperceber pensamentos. Tudo aí está, basta que olhe. Mas há, sobretudo, um certo local.
Mostrou-me o dorso.
- Está a ver? Não há um único desenho regular na espádua direita. Está tudo misturado.
- Realmente, assim é!..
- Sempre que estou muito tempo com alguém, esta zona cobre-se de sombras, depois aparece isso. Se estou com uma mulher, a sua imagem surge ao fim de uma hora no meu dorso, e ela vê aí retratada toda a sua vida: como vai viver, como morrerá, como terá o rosto aos sessenta anos. E se é um homem, a imagem surge no meu dorso ao fim do mesmo tempo. Pode ver-se caído de uma falésia ou esmagado por um comboio. Então, mandam-me de novo embora.
Enquanto falava, percorria as mãos pelas Ilustrações, como para ajeitar as molduras, limpar-lhes o pó; gesto de conhecedor, de amador de arte. Estava agora estendido ao comprido, sob o luar. A noite estava quente, sufocante, até, sem uma aragem. Tínhamos tirado as camisas.
- E nunca mais encontrou essa mulher?
- Nunca mais!
- Acredita que ela veio do futuro?
- Se assim não fosse, como poderia conhecer as histórias que pintou no meu corpo?
Cerrou os olhos, fatigado. A sua voz tornou-se menos distinta. 
- Por vezes, durante a noite, sinto-as moverem-se como formigas sobre o corpo. Sei, então, o que têm a fazer. Nunca as olho. Tento, somente, ter algum repouso, porque durmo pouco. Não as olhe também, previno-o. Volte-se para o outro lado para dormir.
Deitei-me a alguma distância. O homem não me parecia capaz de violência e as imagens eram muito belas. Se não fosse isso ter-me-ia ido embora, acabando com a conversa. Mas as Ilustrações...
 Deixei os olhos percorrê-las. Podia ouvir o Homem Ilustrado respirar, banhado pelo luar. Ao longe, os grilos trilavam suavemente nas ravinas. Deitei-me de lado para observar as imagens. Decorreu talvez uma meia-hora. Não poderia dizer se o Homem Ilustrado dormia, mas de repente ouvi-o dizer num murmúrio:
 - Estão a mover-se, não é verdade?
 Esperei um momento. Depois murmurei:
 - Sim, movem-se.
 As imagens animavam-se, cada uma por sua vez, durante um ou dois minutos. Ali, sob a Lua, com pequenos pensamentos, que vibravam e vozes distantes como as do mar, vi desenrolar-se cada um daqueles pequenos dramas. Uma hora, duas horas, até quando? Será difícil dizê-lo. Sei somente que ali fiquei, fascinado, sem me mover, sob as estrelas que rodavam no céu.
Dezoito Ilustrações. Dezoito histórias. Contei-as uma a uma. 
Fixei os olhos numa cena: uma grande casa com duas figuras no interior. Vi o ovvo de abutres num céu tórrido de leões. E ouvi vozes. 
A primeira imagem estremeceu e animou-se.

E assim principia a maravilhosa e extraordinária aventura de O Homem Ilustrado, cujo corpo marcado por sacrílega operação, nos faz desfilar diante dos olhos dezoito histórias assombrosas, que se interligam, condicionadas no espaço material de um livro. Tal como o Universo, essas dezoito histórias poder-se-iam expandir pelo Infinito, desenvolverem-se sobre si próprias... mas, esse trabalho competirá à imaginação do leitor depois de ter lido, até ao fim.  

Contos publicados na obra: 

  1 - A Selva
  2 - Caleidoscópio 
  3 - O Encontro
  4 - A Auto-Estrada
  5 - O Homem
  6 - A Chuva
  7 - O Homem do Espaço
  8 - As Bolas de Fogo
  9 - A Derradeira Noite
10 - Os Banidos
11 - Sem Tempo, no Espaço
12 - A Raposa e a Floresta
13 - O Visitante
14 - A Betoneira
15 - Autómatos Sociedade Anónima
16 - A Cidade
17 - A Hora H
18 - O Foguete
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