quarta-feira, 7 de maio de 2014

A SEREIAZINHA:LER É VIVER & RENASCER

A pequena sereia

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uito além do oceano, onde a água é tão azul como a flor do loio, e tão clara como o cristal, era um lugar muito, muito profundo, tão profundo, de fato, que nenhum cabo poderia atravessá-lo: muitos campanários de igreja, amontoados uns sobre os outros, não conseguiriam alcançá-lo do chão, abaixo da superfície da água até lá em cima. Lá era o palácio do Rei dos Mares e de seus súditos. Não podemos imaginar que exista algo no fundo do mar mas apenas a areia amarela. De fato, as flores e as plantas mais espetaculares crescem nessa região, as folhas e suas hastes são tão flexíveis, que a menor turbulência na água faz com que elas se agitem como se tivessem vida. Peixes, grandes e pequenos, deslizam por entre os galhos, assim como os pássaros voam por entre as árvores aqui na terra. No lugar mais fundo de todos, fica o castelo do Rei dos Mares. Suas muralhas foram construídas com coral, e as janelas longas e no estilo gótico são do mais puro âmbar. O teto é coberto de conchas, que abrem e fecham a medida que as águas fluem sobre elas. A beleza resplandece aqui soberana, pois em cada uma delas há um pérola cintilante, que ficaria perfeita no diadema de uma rainha.
O Rei dos Mares estava viúvo há muitos anos, e a sua mãe, já idosa, é quem cuidava do palácio para ele. Ela era uma mulher muito sábia, e tinha muito orgulho de sua origem nobre, e por esse motivo ela usava doze ostras na cauda, ao passo que as outras, também com elevada hierarquia, era permitido usar somente seis. Todavia, ela era merecedora de muitos elogios, especialmente pelo cuidado que tinha com as pequenas princesas do mar, as suas netas. Elas eram seis crianças lindas, mas a caçula era a mais bela de todas, sua pele era tão clara e delicada como a pétala de uma rosa, e os seus olhos eram tão azuis como o mar mais profundo, mas, como todas as outras, ela não tinha pés, e o seu corpo terminava numa cauda de peixe.
O dia todo elas brincavam nos grandes salões do castelo, correndo por entre flores vivas que cresciam ao redor da muralha. As imensas janelas de âmbar eram abertas, e os peixes entravam, assim como as andorinhas voam para dentro de nossas casas quando abrimos as janelas, exceto que os peixes nadavam até as princesas, comiam em suas mãos, e gostavam que fizessem carinho neles. Fora do castelo ficava um belo jardim, onde crescia flores vermelhas e brilhantes e outras azuis escuras, além de inflorescências que pareciam chamas de fogo, as frutas brilhavam que nem ouro, e as folhas e os caules moviam para lá e para cá continuamente. A terra era feito da areia mais delicada, porém, azul como a chama do enxofre incandescente.

A pequena sereia
ilustração de Anne Anderson (1874–1930)
Acima de tudo brilhava uma extraordinária radiação azul, como se estivesse rodeada pelo ar lá do alto, através da qual o céu azul brilhava, ao invés das sombrias profundezas do mar. Em tempos de calmaria o sol podia ser visto, parecendo uma flor púrpura, com a luz fluindo do cálice. Cada uma das jovens princesas tinha um pequeno pedaço de terra dentro do jardim, onde elas podiam cavar e plantar o que quisessem. Uma fazia o seu canteiro de flores com o formato de uma baleia, uma outra achou melhor fazer o dela como a figura de uma pequena sereia, mas o canteiro da caçulinha era redondo como sol, e era formado por flores tão vermelhas como os raios do entardecer. Ela era uma criança especial, sossegada e pensativa, e enquanto suas irmãs se regozijavam com as coisas maravilhosas que conseguiam dos naufrágios dos navios, ela não se preocupava com nada, exceto com suas lindas flores vermelhas como o sol, e também de uma maravilhosa estátua de mármore. Ela era a representação de um lindo garoto, esculpida numa pedra totalmente branca, que tinha caído no fundo do mar de algum naufrágio.
Ela havia plantado perto da estátuta um pé de chorão de cor rósea. Ele crescia esplendidamente, e em pouco tempo já espalhava seus tenros galhos por cima da estátua, descendo até as areias azuis. A sombra tinha um tom violeta, e ela se movia para lá e para cá como os galhos, parecia como se a coroa da árvore e a raiz estivessem brincando, e tentassem beijar uma a outra. Nada lhe dava tanto prazer como ficar ouvindo sobre as coisas do mar lá em cima. Ela fez com que sua vó lhe contasse tudo o que ela sabia sobre os navios e as cidades, as pessoas e os animais. Para ela não exista coisa mais maravilhosa e mais linda do que saber que as flores da terra tinham perfumes, mas não aquelas que viviam abaixo no mar, e que as árvores das florestas eram verdes, e que os peixes flutuando entre as árvores cantavam com tanta doçura, que era um prazer muito grande ficar ouvindo tudo isso. A sua vó chamava as aves de pequenos peixes, porque a pequenina não entenderia, pois ela nunca tinha visto um pássaro.
"Quando você chegar aos quinze anos," disse a avó, "você terá permissão para subir e sair do mar, sentar entre os rochedos ao luar, enquanto os grandes navios ficam passando, e então, você irá conhecer tanto as florestas como as cidades."
No ano seguinte, uma de suas irmãs completaria quinze anos: mas como cada uma delas era um ano mais jovem que a outra, a mais jovem teria de esperar cinco anos antes de chegar a sua vez para subir até a superfície, para observar a terra como fazemos. No entanto, cada uma prometia dizer às outras o que elas tinham visto na primeira visita, e o que elas tinham achado mais lindo, porque a avó delas não conseguia contar tudo, havia tantas coisas sobre as quais elas queriam ter informação. Nenhuma delas ansiava tanto pela sua vez de subir como a mais jovem, ela que tinha o mais longo tempo de espera, e que era tão sossegada e pensativa. Muitas noites ela ficava perto da janela aberta, olhando através das águas azuis escuras, e admirando os peixinhos chapinhando na água com suas barbatanas e caudas.
Ela conseguia ver as estrelas e a lua muito palidamente, mas através da água elas pareciam maiores do que aos nossos olhos. Quando algo como uma nuvem negra passava entre ela e as estrelas, ela sabia que se tratava de alguma baleia nadando acima da sua cabeça, ou um navio cheio de seres humanos, que jamais imaginariam que uma linda sereiazinha estava debaixo deles, acenando com suas mãozinhas brancas para a quilha do navio.
Assim que a mais velha completou quinze anos, ela teve permissão para subir até a superfície do oceano. Quando voltou, ela tinha centenas de coisas para contar, mas o mais lindo, dizia ela, era ficar sentada ao luar, sobre um banco de areia, no mar tranquilo, perto da costa, e ficar olhando para uma cidade grande que fica ali perto, onde as luzes piscavam como centenas de estrelas, e ficar escutando o som das canções, o barulho das carruagens, e as vozes dos seres humanos, e depois ouvir os sinos tocando e balançando alegremente nos campanários das igrejas, e como ela não podia se aproximar de todas aquelas coisas maravilhosas, ela ficava imaginando como seria tudo aquilo de perto. Oh, e não é que a irmã mais jovem ouvia ansiosa todas essas histórias? e mais tarde, quando ela ficava com a janela aberta olhando através das águas azuis escuras, ela pensava na grande cidade, com todo o barulho e agitação, e até ficava imaginando que ela podia ouvir o som dos sinos tocando, lá embaixo nas profundezas do mar.
No outro ano a segunda irmã recebeu permissão para subir até a superfície da água, e ficar nadando onde ela quisesse. Ela chegou à superfície assim que o sol estava se pondo, e isto, disse ela, era a coisa mais linda que ela já tinha visto. Todo o céu parecia dourado, enquanto nuvens violetas e róseas, que ela não conseguia descrever, flutuavam acima dela, e, ainda mais rápido do que as nuvens, voava um enorme bando de cisnes selvagens em direção ao por do sol, parecendo com um longo véu branco atravessando o mar. Ela também nadou em direção ao sol, mas ele mergulhou no meio das ondas, e as tintas róseas desapareceram das nuvens e do mar.
A vez da terceira irmã havia chegado, ela era a mais corajosa de todas, e ela nadou até um rio muito largo que desembocava no mar. Sentada na margem, ela avistou verdes colinas cobertas com lindos vinhedos, palácios e castelos ficavam espiando por entre as árvores orgulhosas da floresta, ela ouviu os pássaros cantando, e os raios do sol eram tão poderosos que ela muitas vezes era obrigada a mergulhar debaixo das águas para esfriar o rosto que ardia. Numa enseada estreita ela avistou todo um grupo de pequenas crianças humanas, totalmente sem roupas, e que brincavam na água, ela queria brincar com elas, mas elas fugiram muito assustadas, e então, um pequeno animal negro se aproximou da água, era um cachorro, mas ela não sabia disto, porque ela nunca tinha visto um antes. Este animal latiu para ela de modo tão assustador que ela fugiu amedrontada, e correu de volta para o mar aberto. Mas ela disse que jamais se esquecerá da bela floresta, das colinas verdes, e das lindas criancinhas que nadavam na água, embora não tivessem rabo de peixe.
A quarta irmã era mais tímida, ela ficou no meio do oceano, mas disse que lá era tudo tão lindo como perto da terra. Ela podia ver há muitas distâncias em torno dela, e o céu lá em cima se parecia como um sino de vidro. Ela tinha visto os navios, mas a uma distância tão grande que eles pareciam como gaivotas. Os golfinhos brincavam com as ondas, e as grandes baleias lançavam água de suas narinas até que pareciam como se centenas de fontes estivessem brincando com água em todas as direções.
O aniversário da quinta irmã aconteceu no inverno, então, tinha chegado a vez dela, ela viu o que as outras não tinham visto na primeira vez que haviam subido. O mar parecia totalmente verde, e imensos blocos de gelo flutuavam por todos os lados, cada um parecido com uma pérola, disse ela, porém, maiores e mais majestosos do que as igrejas construídas pelos homens. Elas tinham os formatos mais singulares, e brilhavam como diamantes. Ela então, se sentou sobre um dos maiores, e o vento brincava com seus cabelos longos, e ela notou que todos os navios passavam rapidamente, e iam para lugares tão distantes quanto possível dos blocos de gelo, parecia que tinham medo deles. Ao anoitecer, depois que o sol se pôs, nuvens escuras cobriram o céu, os trovões rolavam como pedra e os relâmpagos reluziam, e a luz vermelhava brilhava sobre os blocos de gelo a medida que balançavam e agitavam o mar que subia. Todas as velas dos navios encolhiam de medo e tremiam, enquanto ela se sentava calmamente sobre o iceberg que flutuava, admirando os relâmpagos azuis, quando eles penetravam seus raios com múltiplos braços dentro do mar.
Quando as irmãs tiveram permissão para subir à superfície pela primeira vez, todas elas ficaram felizes com as paisagens novas e belas que viram, mas agora, como as garotas já haviam crescido, ela podiam ir para onde quisessem, e até ficaram indiferentes com isso. Elas desejavam voltar novamente para a água, e depois que um mês tinha se passado elas diziam que tudo era muito mais lindo lá embaixo, e que era muito mais agradável ficar em casa. Mas ainda nas horas da noite, as cinco irmãs abraçavam-se umas às outras, e subiam até a superfície, em fileira.
Elas tinham vozes muito mais lindas do que qualquer humano poderia ter, e antes que a tempestade se aproximasse, quando elas pensavam que um navio iria naufragar, elas nadavam diante do barco, e cantavam docemente as delícias que poderiam ser encontradas no fundo do mar, e pediam aos marinheiros para que eles não tivessem medo caso naufragassem até o fundo. Mas os marinheiros não conseguiam entender a canção, e eles pensavam que eram os gritos da tempestade. E elas nunca gostavam de ver estas coisas, pois se o navio afundasse, os homens se afogariam, e apenas o corpo deles chegava ao palácio do Rei dos Mares.
Quando as irmãs subiram, abraçadas umas às outras pelas águas dessa maneira, a irmã mais jovem delas gostava de ficar sozinha, preocupada com elas, pronta para gritar, o único problema era que as sereias não possuíam lágrimas, e por isso elas sofriam mais. "Oh, se eu já tivesse quinze anos," dizia ela: "Eu sei que eu amarei o mundo que fica lá em cima, e todas as pessoas que moram nele."

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